De que forma vamos pagar as compras na feira, a conta no restaurante ou o bilhete do ônibus nos próximos anos? No que depender dos esforços da indústria de meios de pagamento, o cenário passará por mudanças radicais, que reduzirão a circulação de papel-moeda e facilitarão o pagamento por celular e no e-commerce. Os especialistas acreditam que estamos no ponto de virada de uma nova geração de serviços, que proporcionam mais conveniência e rapidez, sem perder a segurança.
“Vivemos um momento efervescente. Estamos escrevendo coletivamente como será o nosso mercado num futuro próximo”, observa Marcos Magalhães, diretor-executivo de Negócios Digitais do Itaú Unibanco e presidente da Rede.
Uma das tecnologias que prometem finalmente decolar é o pagamento por aproximação (contactless), que está com toda a infraestrutura preparada. A principal vantagem é dispensar a senha para pagamentos abaixo de R$ 50 e assim agilizar o processo. Quase todos os terminais de pagamento de cartão de débito e crédito já são compatíveis com o NFC (Near Field Communication), presente em cartões, celulares e dispositivos wearable (pulseiras, relógios etc). A Getnet, por exemplo, tem 1 milhão de dispositivos preparados –mas apenas 2% das transações são contactless. Em mercados mais maduros, como a Austrália, mais de 90% dos pagamentos já são por aproximação.
No Santander, são 500 mil clientes que utilizam o Samsung Pass no Brasil –a tecnologia de pagamento por aproximação em relógios, pulseiras e adesivos. A demanda por dispositivos wearable é crescente, segundo Rodrigo Cury, diretor de Cartões do Santander Brasil. “O Pass naturalmente acabou se tornando um acessório de moda, o que reflete nosso lançamento com uma famosa marca (Osklen) e nossa intenção de continuar avançando nessa direção, por demanda dos nossos clientes”, disse.
O Banco do Brasil observou um crescimento de 111,8% no volume das transações com NFC, no primeiro semestre de 2019, em relação ao segundo semestre de 2018. A tecnologia pode ser usada nas funções crédito ou débito, via Apple Pay, Samsung Pay, Google Pay, pulseira Ourocard ou cartão de plástico com NFC. Até o fim de 2019, o BB estima chegar a 5 milhões de cartões emitidos com a tecnologia e, em 2020, ter toda a base de clientes com cartões compatíveis com NFC.
Aumentar a emissão de cartões com a tecnologia e trabalhar a educação e a comunicação para que portadores e estabelecimentos saibam usá-la vai ajudar na massificação do contactless, na visão de Paulo Frossard, vice-presidente de Novos Negócios da Mastercard para Brasil e Cone Sul. “Além disso, é preciso que ela (a tecnologia) esteja no dia a dia das pessoas, no postos de gasolina, no mercado”, disse.
Uma estratégia da indústria de meios de pagamento é investir nos sistemas de transporte público. O pagamento por aproximação já está disponível no MetrôRio, na Supervia, transporte ferroviário do Rio de Janeiro, e no transporte público das cidades de Jundiaí (SP), Curitiba (PR) e no Distrito Federal (DF).
Nos pedágios, a tecnologia ajudaria a diminuir as filas, mas o estágio ainda é inicial, de negociação com as concessionárias. O interesse existe: 81% dos brasileiros gostariam de usar esse método de pagamento nos pedágios, segundo pesquisa da Mastercard e da Euromonitor. Por enquanto, a tecnologia está em uso apenas por algumas operadoras no Paraná e no Rio Grande do Sul.
Para Alessandro Rabelo, diretor-executivo de Produtos da Visa do Brasil, o pagamento por aproximação permite entrar em segmentos em que a população prefere pagar com dinheiro. “A pessoa vai preferir pagar do jeito mais rápido; se for melhor pagar R$ 5 com cartão ou celular, ele vai fazer; imagine como isso encurtaria a fila do fast food no shopping”, disse.
CARTEIRAS DIGITAIS
A crescente oferta de “carteiras digitais” tanto de bancos tradicionais, como do varejo e de fintechs, também deverá impulsionar o uso do pagamento por aproximação. O banco Safra, por exemplo, lançou em junho a SafraWallet, aplicativo que permite fazer compras em estabelecimentos usando a tecnologia NFC e também QR Code (código de barras bidimensional que pode ser escaneado pelo celular).
Da mesma forma, serviços de pagamentos móveis como Apple Pay, Google Pay e Samsung Pay podem ser usados por clientes de bancos como Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil (consulte o serviço para saber se o seu cartão é aceito).
O Itaú Unibanco já contabiliza 10 milhões de transações feitas pelos seus clientes via Apple Pay, Google Pay e Samsung Pay. “A adesão às carteiras digitais foi mais rápida do que imaginávamos”, disse Rubens Fogli, diretor de Negócios Digitais do Itaú Unibanco. “Vemos um ritmo mais acelerado de mudanças tecnológicas e também de mudanças culturais que contribuem com esse movimento.”
Em julho, a Samsung anunciou um crescimento de 50% no uso do Samsung Pay no Brasil e aumento de mais de 100% no número de cartões registrados, nos últimos 12 meses. A quantidade mensal de usuários ativos teve incremento de 80% e o número de transações cresceu mais de 260% no mesmo período.
Segundo a Mastercard, 60% dos pagamentos por aproximação são feitos em cartão, e 40% pelo celular. “A desmaterialização do cartão de plástico é um processo que já se encontra em curso no Brasil, ainda que de maneira tímida”, observa Edlayne Altheman Burr,diretora-executiva da Accenture Strategy e líder de estratégias de pagamentos na América Latina.
Ela explica que a “eliminação do plástico” não implica necessariamente em uma mudança ou impacto para a indústria, já que ele é apenas um meio físico para a identificação do pagador e pode ser facilmente substituído por outras tecnologias, como o celular. “A questão-chave desta discussão reside no modelo de negócios e na arquitetura de um arranjo futuro; em qual agente terá predomínio nesta relação e quais agentes não serão mais necessários para o processamento de pagamentos”, diz.
Neste cenário de transformação, fintechs e startups têm investido pesado para conquistar a sua fatia do bolo. A startup colombiana de entrega sob demanda Rappi, por exemplo, quer se posicionar como um “superapp” que centraliza vários serviços no celular, inclusive de pagamento, como acontece no mercado chinês. “Temos como diferencial essa frequência do usuário. E a nossa de cultura de startup funciona bem em um mercado que exige crescimento forte e acelerado”, disse Ricardo Bechara, cofundador da Rappi Brasil.
Com o aplicativo RappiPay, é possível fazer transferências de dinheiro entre usuários Rappi e pagar compras em estabelecimentos físicos pelo QR Code. Em junho, a Rappi lançou com a Visa um cartão de débito que pode ser usado mesmo por quem não tem conta bancária, inclusive para fazer compras online e assinar serviços digitais, via Rappi Pay. Haverá cashback em todas as compras realizadas com o cartão, ou seja, parte do valor será convertido em créditos.
A Movile Pay, fintech do grupo Movile, que controla as plataformas iFood, Sympla e Playkids, também está apostando forte na sua carteira digital, que permite o pagamento por QR Code. Em cinco meses de operação, cadastrou 10 mil restaurantes. “Estamos construindo a maior wallet do país; vamos difundir o uso dessa forma de pagamento que facilita a vida das pessoas, agilizando momentos como da fila para pagar a conta de um restaurante”, diz Daniel Bergman, CEO da Movile Pay. “Com o QR Code, cada um paga a conta no seu celular, sem gerar fila no caixa; como nosso cliente já usa serviços das empresas da Movile ao longo do dia, a Movile Pay usa essa alta frequência para melhorar a vida desse cliente.”
Fintechs, varejo e players tradicionais irão cooperar entre si, mesmo sendo concorrentes, acredita Magalhães, do Itaú Unibanco e da Rede. “A dinâmica é tripartite; cada vez mais a arquitetura é aberta, num mundo de cooperação, ou melhor, de coopetição”, disse. “Muitas carteiras digitais vão surgir, numa febre como a das paleterias mexicanas, mas nem todas vão ter fôlego ou engajamento”, compara.
Em julho, o Itaú Unibanco iniciou a fase de testes do aplicativo iti, que permite fazer pagamentos em estabelecimentos por QR Code e transferência de valores para a lista de contatos sem taxas. Para os lojistas, a vantagem é receber o pagamento no mesmo dia, mesmo em operações com uso de cartão de crédito. Para usar o serviço, não será preciso ter conta bancária ou comprovar renda. “O iti é voltado a qualquer tipo de público, inclusive o agnóstico a bancos, e, por isso, gerará inclusão financeira”, disse Livia Chanes, diretora do iti.
PAGAMENTOS INSTANTÂNEOS
Ao promover o pagamento entre pessoas (P2P ou peer-to-peer), a plataforma do Itaú Unibanco dá à empresa um “aquecimento” para o sistema de pagamento instantâneo, que está sendo estruturado com a regulação do Banco Central, e prometido para fim de 2020.
Isso tornará possível fazer, em segundos, transferências de valores (mesmo que sejam centavos) a qualquer hora (24 horas, 7 dias por semana), de pessoa para pessoa, de pessoa para estabelecimento e entre empresas (B2B) –de maneira tão simples como enviar um e-mail. Taxas e impostos governamentais também poderão ser quitados por pagamento instantâneo.
“A construção desse novo ecossistema é prioritária para o Banco Central”, disse Carlos Brandt, chefe do Departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos do Banco Central.
No fim de julho, o Banco Central publicou uma nova versão do documento de especificações técnicas e de negócio do ecossistema, com base nas discussões do Fórum de Pagamentos Instantâneos, do qual participam representantes do mercado. No cronograma do Bacen, em setembro de 2020 começam os testes homologatórios do sistema, que deve iniciar operação em novembro de 2020.
Os pagamentos instantâneos irão conviver com outros serviços, e não ameaçá-los, na visão de Brandt. Segundo ele, em outros países esse sistema foi usado para captar e reter clientes. “Será uma nova dinâmica de rentabilização”, defende. “Com o histórico da vida econômica dos seus clientes, haverá oportunidades para oferecer novos serviços e facilidades.”
SEGURANÇA
Mas, com o advento dos pagamentos instantâneos, qual será o papel das bandeiras? Essa é uma pergunta que tem sido feita com recorrência a Fernando Telles, diretor-geral da Visa do Brasil. “Somos o instituidor dos padrões de segurança, das regras, da garantia do estabelecimento, do consumidor; nosso trabalho é proteger a indústria dos fraudadores, que são excelentes”, diz.
Atualmente, os desafios de segurança no pagamento estão principalmente no e-commerce. “Temos uns dos piores níveis de aprovação no mundo digital, de 68%”, disse Renato Ottoni, diretor de Cyber & Intelligence da Mastercard Brasil. “Não conseguir combater os fraudadores tem um custo alto para a sociedade.” Nas compras presenciais com cartão, a taxa de aprovação é de 95,6%.
No combate ao problema, bancos, bandeiras, adquirentes e varejo começaram a adotar um novo protocolo de cartões para compras online, o EMV 3DS 2.0, que analisa um volume de dados 10 vezes maior que o protocolo anterior e faz uma autenticação silenciosa. Em abril, a Caixa, a empresa de e-commerce Peixe Urbano e a Visa saíram na frente, ao realizar a primeira transação de compra online no Brasil com esta solução.
“Com uma maior quantidade de informações do estabelecimento comercial, do dispositivo utilizado e do histórico de pagamento, o 3DS 2.0 permite a validação da transação de compra de forma mais segura”, diz o vice-presidente de Modelos de Negócios de Varejo da Caixa, Júlio Cesar Volpp Sierra, para quem o novo modelo torna o processo mais eficaz, inclusive na verificação da identidade do portador, com redução das fraudes e melhor experiência por parte dos clientes. Em junho, o Mercado Pago, fintech do Mercado Livre, o Itaú Unibanco e a Mastercard também anunciaram o uso do 3DS 2.0.
Alia-se à tecnologia 3DS 2.0 a “tokenização”, recurso de segurança que gera um código identificador digital exclusivo, aleatório e temporário para proteger dados da transação. “Com isso, não faz mais sentido para o criminoso pegar os dados da transação, pois não vai poder fazer mais nada com eles”, explica Edson Ortega, diretor-executivo de Risco da Visa Brasil. A biometria comportamental, que analisa padrões de comportamento como de digitação ou rolagem da tela, é outra ferramenta que já está em uso para melhorar a segurança do usuário. “Temos que tirar o peso do usuário. Por isso seguimos procurando mais tecnologia e substituindo senhas por biometria”, disse Ottoni, da Mastercard.
Metrô do Rio aceita pagamento por aproximação
Desde abril, usuários do metrô do Rio podem passar a catraca com cartões ou dispositivos compatíveis com a tecnologia NFC (Near Field Communication) para pagamento por aproximação (contactless). Uma grande mudança, principalmente se pensarmos que a empresa há dois anos só aceitava dinheiro vivo. “A intenção é oferecer mais conveniência ao passageiro, que pode pular a etapa da bilheteria”, disse Guilherme Ramalho, presidente do MetrôRio. “E, para nós, a vantagem é reduzir as dificuldades e os custos de lidar com dinheiro em papel-moeda.”
O projeto, desenvolvido pelo MetrôRio e pela Visa, contou também com a parceria do Banco do Brasil, Bradesco e Cielo. “O nosso maior desafio foi fazer um trabalho em conjunto, com diferentes atores”, disse Ramalho. “Garantir a segurança e a confiabilidade do sistema, sofrendo pressões de prazo do projeto não foi fácil; sabíamos que a lentidão no sistema traria problemas na estação, mas deu certo, pois conseguimos corrigir as falhas e hoje temos altas taxas de autenticação.” Os índices de autorização de transação no MetrôRio são comparáveis aos de outros setores, afirmou Alessandro Rabelo, diretor-executivo de Produtos da Visa do Brasil.
Segundo Ramalho, a adoção da tecnologia pelos passageiros ainda é baixa, mas o número de usuários cresce constantemente, 18% ao dia. Ele percebe que ainda há desconhecimento do público em relação à tecnologia de pagamento e, por isso, o MetrôRio precisa insistir nas ações de comunicação. “Mas a massificação do uso se dará pelo exemplo, além da publicidade.” Funcionários que antes trabalhavam nas bilheterias estão sendo deslocados para orientar a população com dúvidas sobre o funcionamento da tecnologia de pagamento.
O percentual de retenção dessa tecnologia no MetrôRio é alto, de 93%. “Ou seja, quem utiliza mantém o hábito”, explica Ramalho. Do total de pagamentos por aproximação no MetrôRio, 60% são feitos por aplicativos de pagamento do celular.
PROJETO-PILOTO EM SÃO PAULO
Outra cidade que está entrando na modalidade é São Paulo. Por meio de um projeto-piloto criado pela prefeitura, 200 ônibus de 12 linhas passaram a aceitar o pagamento em cartão de crédito e débito via aproximação em setembro.
Somente cartões que tenham a tecnologia de contactless (NFC) poderão ser usados pelos passageiros, que deverão aproximar o cartão no equipamento de validação de cartões junto à catraca –o mesmo já usado pelos usuários para carregar o Bilhete Único; o pagamento é realizado sem uso de senha e são aceitas as bandeiras Visa e Mastercard.
Ainda em fase inicial, a previsão é que o projeto seja testado por apenas 3 meses ou até atingir o limite de 500 mil transações. Segundo a prefeitura, estas 12 linhas transportam 2,9 milhões de passageiros por mês e foram escolhidas por apresentarem a maior quantidade de viagens pagas em dinheiro.
Na China, papel-moeda é coisa do passado
Nas barracas de rua, nos restaurantes, nos pontos turísticos, nos táxis, nas lojas de shoppings e quaisquer pontos de consumo na China, a presença do QR Code é garantida. Com seus celulares, os chineses usam app e câmera para escanear o código do quadrado e fazer o pagamento em poucos segundos –além de pegar cupons de desconto, dar gorjetas e até esmolas.
A praticidade das “carteiras digitais” é tanta que já se tornou o principal meio de pagamento de 70% da população, segundo estudo da empresa Adyen. De acordo com o Banco Popular da China, o volume de transações pelo celular atingiu US$ 41,5 trilhões em 2018, 28 vezes maior que há cinco anos.
Os usuários se dividem em dois principais serviços de pagamento móvel, o Alipay, do grupo Alibaba, e WeChat, da Tencent, que abocanham 90% desse mercado. Essas empresas fizeram altos investimentos para incentivar o uso e a fidelização de suas soluções de pagamento, afirma Edlayne Altheman Burr, diretora-executiva da Accenture Strategy e líder de Estratégias de Pagamentos na América Latina.
O Brasil tem uma realidade diferente da chinesa e, por isso, segue outra tendência nos meios de pagamento, na visão de Edlayne. “Aqui, o uso do cartão como meio de pagamento é altamente difundido, pela percepção de segurança e praticidade nos pagamentos”, disse.
A executiva observa que no Brasil as iniciativas de pagamentos digitais se atrelam ao ecossistema de cartões para viabilizar suas experiências, seja ao aceitarem cartões em suas carteiras digitais ou ao se utilizarem da base de máquinas POS (máquina de cartão) das adquirentes para captura via QR Code, por exemplo, o que demonstra a importância do cartão como meio de pagamento eletrônico no Brasil.
No futurista cenário chinês, dá para pagar até com um sorriso, como relatou a última edição da revista CIAB FEBRABAN. O reconhecimento facial já vem sendo testado para fazer transações de pagamentos. A solução “smile to pay”, desenvolvida pela Ant Financial, subsidiária do Alibaba, usa a biometria facial para autorizar o pagamento em segundos, após a digitação do número do celular, em uma loja da rede de lanchonetes KFC. A mesma solução já é oferecida no Brasil, com o início das operações da Ant Financial no país.
Os “pagamentos invisíveis” são outra tendência tecnológica, em teste na China. No supermercado TaoCafe, do grupo Alibaba, o cliente entra na loja, escolhe o seu produto e vai embora, sem passar pelo caixa. “Podemos imaginar que este seja o próximo passo da evolução dos meios de pagamento”, diz Edlayne.